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Macumba e Orixás: Uma Jornada de Resistência da África ao Brasil


Macumba e Orixás: Uma Jornada de Resistência da África ao Brasil

Os cultos de matriz africana no Brasil, como o Candomblé, foram rotulados como "Macumba", um termo genérico e pejorativo. Suas raízes vêm da África Ocidental pré-colonial e foram forçosamente trazidas para o Brasil durante a escravidão. Apesar da repressão, essas crenças resistiram e se transformaram, moldando a cultura brasileira.

A Cosmovisão Iorubá e os Orixás

A espiritualidade iorubá, base das religiões afro-brasileiras, entende o universo como a interação entre o Orum (mundo espiritual) e o Aiyé (mundo material), que são interligados. O ser humano (Eniyan) é visto como a intersecção desses dois mundos, composto por Ara (corpo físico), Ojiji (sombra/essência), Okan (coração/inteligência), Emi (sopro vital) e, principalmente, Ori (cabeça/destino individual).

O Ori é central, representando o destino escolhido antes do nascimento. No entanto, o Iwa (caráter) é igualmente fundamental, pois um bom caráter (Iwa Rere) pode mudar um destino desafiador. Rituais como o Bori e a consulta oracular de Ifá ajudam a fortalecer o Ori e a guiar o indivíduo. Os Orixás são divindades que emanam de Olorum (Deus supremo), governando forças da natureza e aspectos da vida humana. Eles são energias vivas e ancestrais divinizados.

A mitologia iorubá, transmitida oralmente e pelo sistema Ifá, explica a origem do mundo e dos Orixás. Essas narrativas sagradas servem como modelos de comportamento e atribuem sentido à existência. A evolução dos mitos reflete transformações sociais, como a transição de um período matrifocal (com a Grande Deusa central) para o patriarcado.

Exu é um Orixá singular e fundamental. Longe da imagem distorcida de "diabo", ele é o princípio do movimento, da comunicação e da ordem. É o mensageiro entre Orum e Aiyé e o guardião das encruzilhadas, essencial para a comunicação com os Orixás. Ogum representa o trabalho, a tecnologia e a civilização, sendo o senhor dos metais e um arquétipo civilizador.

A espiritualidade na África pré-colonial era integrada à vida diária e à organização social. A oralidade transmitia o conhecimento sagrado, e os rituais, incluindo sacrifícios e iniciações, mantinham o equilíbrio cósmico e os laços com o divino, garantindo a circulação do Axé (força vital).

A Travessia e a Resistência no Brasil

A chegada forçada de africanos escravizados ao Brasil trouxe consigo uma vasta diversidade cultural e religiosa. Africanos de diversas etnias (Iorubás, Jejes, Bantos, Hauçás, Malês, entre outros) trouxeram suas próprias cosmogonias, panteões (Orixás, Voduns, Nkisis) e rituais.

Diante da proibição dos cultos africanos e da imposição do catolicismo, os escravizados desenvolveram estratégias de sobrevivência. O sincretismo religioso foi uma das mais notáveis, associando Orixás e divindades africanas a santos católicos (por exemplo, Iansã/Oyá com Santa Bárbara, Ogum com São Jorge, Iemanjá ou Oxum com Nossa Senhora da Conceição). Essa prática permitiu a continuidade velada dos cultos.

Além do sincretismo, a formação de terreiros de Candomblé, especialmente a partir do século XIX, foi crucial. Esses locais se tornaram espaços não apenas de culto, mas também de preservação da identidade étnica, da memória ancestral e da coesão comunitária. Neles, as línguas e cânticos africanos eram mantidos vivos, e os rituais preservavam os laços com a África. O Candomblé atuou como um "polo aglutinador de uma consciência étnica", um ponto de resistência simbólica contra a desumanização imposta pela escravidão e a tentativa de apagamento cultural.


Estrutura e Adaptação do Candomblé no Brasil

A estrutura do Candomblé no Brasil reflete a adaptação e a resistência impostas pela escravidão. A perda de certas divindades e rituais, como o culto a Oko (Orixá da agricultura), exemplifica como a experiência escravista moldou as práticas religiosas. A incapacidade de celebrar a fertilidade de terras não próprias levou à desvalorização de divindades ligadas à agricultura. Por outro lado, a incorporação de elementos de outras culturas oprimidas, como a indígena (dando origem ao Candomblé de Caboclo), demonstra a capacidade de diálogo e síntese dessas religiões como forma de fortalecer a resistência cultural.

Apesar das estratégias de dissimulação, a perseguição às religiões afro-brasileiras foi constante durante e após o período colonial. Vistas como ameaça à ordem social e religiosa dominante, as casas de culto eram frequentemente invadidas, objetos sagrados apreendidos e líderes religiosos presos. A participação de membros de terreiros em revoltas, como a Revolta dos Malês em 1835, reforçou a visão de perigo social por parte das elites. A transição da África para o Brasil foi um processo doloroso de perda, adaptação e recriação, mas a resiliência dos africanos e seus descendentes permitiu a preservação e transformação de suas crenças em religiões genuinamente afro-brasileiras.

Sobrevivência e Transformação: Do Pós-Colonial ao Presente

A abolição da escravatura em 1888 e a Proclamação da República em 1889 não acabaram com a marginalização das religiões de matriz africana. O período pós-colonial trouxe novas formas de organização, como o surgimento da Umbanda, mas também a continuidade da repressão e novos desafios. A concentração de afrodescendentes nas cidades após a abolição permitiu uma reorganização e maior visibilidade dos terreiros de Candomblé. Contudo, o Código Penal de 1890 criminalizava práticas como curandeirismo e "magia", perpetuando a perseguição policial.

No início do século XX, no Rio de Janeiro, surgiu a Umbanda, descrita como uma síntese religiosa brasileira, amalgamando elementos do Candomblé (especialmente banto), catolicismo popular, espiritismo kardecista e crenças indígenas. Com rituais em português e uma estrutura mais acessível, a Umbanda rapidamente se popularizou, atraindo seguidores de diversas origens. Figuras como o Preto Velho (sabedoria ancestral) e o Caboclo (espírito indígena) tornaram-se centrais, refletindo uma busca por identidade religiosa nacional. Apesar de sua popularidade, a Umbanda também sofreu preconceito, sendo vista por alguns como uma forma "embranquecida" das tradições originais.

O termo "Macumba" continuou a ser usado de forma pejorativa e generalizante para qualquer prática afro-brasileira considerada "primitiva" ou "maléfica", especialmente no Rio de Janeiro para cultos mais ecléticos. Ao longo do século XX, apesar do crescente interesse de intelectuais e artistas, a repressão estatal e social persistiu. Durante a Era Vargas, houve novas ondas de perseguição, associando essas práticas ao "atraso cultural". A luta pela liberdade religiosa culminou em conquistas legais, como o reconhecimento constitucional da liberdade de culto.

Nas últimas décadas, no entanto, houve um ressurgimento da intolerância e da violência contra as religiões de matriz africana. O crescimento de denominações neopentecostais trouxe um discurso de "guerra espiritual", demonizando Orixás e entidades, o que resultou em ataques a terreiros, agressões a fiéis e destruição de símbolos sagrados. Essa violência contemporânea é vista não apenas como intolerância religiosa, mas como uma manifestação do racismo estrutural que busca apagar a herança cultural e espiritual negra. A luta atual envolve garantir a liberdade de culto, combater o racismo religioso, buscar a devolução do patrimônio sagrado confiscado e reconhecer plenamente a contribuição dessas religiões para a cultura brasileira.

Referências
PARIZI, Vicente Galvão. O livro dos Orixás: África e Brasil. Porto Alegre, RS: Editora
Fi, 2020. Disponível em: https://www.institutobuzios.org.br/wp-content/uploads/
2021/01/Vicente-Parizi_O-Livro-dos-Orixas.pdf
STRECKER, Heidi. Candomblé e umbanda - Religiões com influência africana e
sincretismo religioso. UOL Educação. Disponível em: https://
educacao.uol.com.br/disciplinas/cultura-brasileira/candomble-e-umbanda-
religioes-africanas-e-sincretismo-religioso.htm
WIKIPÉDIA. Religiões afro-brasileiras. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/
wiki/Religi%C3%B5es_afro-brasileiras
SILVA, Eduardo Marques da. O candomblé como forma de resistência escrava à
colonização. Revista Educação Pública, 21 jan. 2014. Disponível em: https://
educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/14/3/o-candombleacute-como-forma-de-
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D'ANGELO, Helô. As origens da violência contra religiões afro-brasileiras. Revista
Cult, 21 set. 2017. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/violencia-
religiosa-candomble-umbanda/
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a
experiência religiosa no candomblé. Petrópolis: Vozes, 1998. (Citado em Parizi,
2020)

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